[notícia publicada pela UFMG, na quinta-feira, 2 de janeiro 2025, às 08h44, no site: https://ufmg.br/comunicacao/noticias/politicas-contra-teoria-de-genero-serao-tema-de-seminario-internacional-na-ufmg]
Evento organizado pelo Ieat será realizado de 15 a 17 de janeiro no campus Pampulha e contará com a participação remota da filósofa Judith Butler.
Um grande número de países, com mais intensidade desde o ano 2000, têm sido palco de ofensivas antigênero, que têm o objetivo de demonizar a ideia de gênero como uma das estratégias para refundar a noção de sociedade tradicional. Em razão da relevância do fenômeno, pesquisadores de diferentes regiões do mundo têm se dedicado a tentar compreender a sua emergência nos tempos atuais. Alguns desses pesquisadores estarão em Belo Horizonte, de 15 a 17 de janeiro, para discutir o assunto sob os mais diversos ângulos, no seminário Quem tem medo de gênero?, que terá atividades no Auditório da Reitoria, no campus Pampulha.
O evento é fruto do projeto de residência As políticas contra o gênero e os processos de (des)democratização no Brasil, desenvolvido no Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (Ieat) da UFMG pelos professores Marco Aurélio Máximo Prado, do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), e Marcelo Cattoni de Oliveira, da Faculdade de Direito. Ambos integrantes do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBTQIA+ (Prado é o coordenador), eles organizam o encontro, ao lado de pesquisadores de outras instituições.
O ponto de partida para a elaboração da programação e para as discussões é o livro Quem tem medo do gênero? (Boitempo Editorial, 2024), da filósofa americana Judith Butler. Há sete anos, ela foi agredida em uma visita que fez a São Paulo. O episódio compõe, junto com a ascensão de políticas antigênero na atualidade, o pensamento inaugural da obra.
“Nós e colegas do Brasil e de outros países estudamos a consolidação e a organização de atores e grupos políticos que constituem essa ofensiva contra o gênero, fortalecendo posições políticas e coletivas ultraconservadoras no seio das democracias”, escrevem, em texto de divulgação do evento, Marco Prado e Marcelo Cattoni.
Ainda em seu texto, como forma de anunciar a abordagem das palestras e dos debates, os professores da UFMG se perguntam sobre “qual será o estado dessas políticas transnacionais de gênero, que disputas de poder elas encerram e qual o impacto da obra de Butler para a compreensão das democracias contemporâneas”. A concepção do evento partiu, segundo eles, de perspectivas transdisciplinares e visadas transnacionais. Judith Butler fará a conferência de abertura no dia 15, às 19h, por vídeo.
As inscrições devem ser feitas no portal da Even3. Outras informações estão na página do seminário, no site do NUH.
Ataque aos estudos de gênero
Desde a década de 2010, o professor Éric Fassin, da Universidade de Paris 8 Vincennes–Saint-Denis, tem trabalhado ao lado de colegas ameaçados pelas autoridades, especialmente na Turquia e no Brasil. Na França, segundo ele, os ataques aos estudos de gênero começaram no início daquela década e explodiram com as mobilizações contra o “casamento para todos”, em 2012 e 2013. “Logo me vi comparando com outros países da Europa, como Hungria e Itália, e também da América Latina, como o Brasil”, conta Fassin, que leciona e pesquisa na área de sociologia e estudos de gênero.
O que chamou a atenção de Fassin foi que não se tratava apenas de uma reação contra o progresso dos direitos das mulheres e das minorias sexuais. “Foi também um ataque aos estudos de gênero”, afirma. “Na França, falamos de ‘teoria de gênero’, em vez de ‘ideologia de gênero’ – e ela foi atacada em nome do ‘senso comum’. Esse anti-intelectualismo marcou uma profunda diferença em relação à cruzada do Vaticano contra o conceito de gênero; ele agora ressoava com uma corrente política descrita como ‘populista’”, explica o professor francês, que vai participar de mesa no dia 16 de janeiro, às 14h.
Desde meados da década de 2010, na França, assim como nos Estados Unidos e no Brasil, prossegue Fassin, o anti-intelectualismo se espalhou, não apenas na esfera sexual (um exemplo é a epidemia internacional de transfobia), mas também contra a Teoria Crítica da Raça. “Assim como no caso do gênero, a questão é a ligação do campo de estudo com os movimentos sociais, como MeToo e Black Lives Matter. Assim como o sexismo, a homofobia e a transfobia, o anti-intelectualismo também impulsiona a xenofobia, o racismo e a islamofobia. Sua retórica em nome da liberdade de expressão serviu de pretexto para atacar a liberdade acadêmica”, diz Fassin.
O professor de Paris 8 ressalta que esse anti-intelectualismo político não deve ser confundido com uma distinção sociológica – entre os intelectuais e o povo, ou entre graduados e os não graduados. “Trata-se de uma ideologia que visa desviar o ressentimento das elites econômicas e mobilizá-lo contra as elites culturais. É o ponto de encontro da retórica e da lógica neoliberal e neofascista. As campanhas contra o gênero serviram como um catalisador para denunciar”, esclarece Éric Fassin.
Direito das pessoas trans à educação
Pedagoga formada pela PUC-SP e mestranda pela USP, Maria Clara Araújo tem se debruçado sobre a disputa em torno das políticas educacionais para travestis e transexuais, lidando especialmente com projetos de lei – que ela nomeia antigênero – protocolados na Câmara dos Deputados de 2014 a 2022. Em suas pesquisas mais recentes, Maria Clara compartilha indicações acerca de “como o discurso e as ofensivas antigênero têm antagonizado a identidade de gênero na educação, que é uma garantia fundamental para a efetivação do direito de travestis e transexuais”.
A pesquisadora trans, que publicou em 2022 Pedagogias das travestilidades (Civilização Brasileira), lança mão, em seus estudos de mestrado, do argumento de que o direito à educação de travestis e trans se efetiva a partir do momento em que ocorre o reconhecimento da identidade de gênero, de discentes e também de docentes, em escolas e universidades. “Esses processos não estão dados, o movimento trans brasileiro tem sido muito efetivo em sua luta histórica pelo direito à educação. Um ótimo exemplo é a política de nome social, que tem propiciado que nossa população não apenas adentre os espaços educacionais, mas sobretudo que tenhamos as condições necessárias para permanecer”, enfatiza.
Na visão de Maria Clara Araújo, é importante ressaltar que movimento trans não apenas vem apontando como o discurso e as ofensivas antagonizam o direito dessas pessoas, “mas também tem reforçado a necessidade de proteger o direito da população trans à educação, quando estamos numa luta perene por uma redistribuição material e simbólica”. A pesquisadora vai expor suas ideias na mesa de 16 de janeiro, às 9h.
O comunismo, o feminismo e o movimento LGBT
Estudioso do quadro latino-americano, Juan Marco Vaggioni, da Universidade Nacional de Córdoba, afirma que os setores que defendem valores tradicionais cristãos em oposição aos movimentos feministas e LGBT+ na América Latina mudaram para adaptar-se a diversos cenários e temporalidades. Em particular, segundo ele, a denominada luta contra a “ideologia de gênero” foi adquirindo importância crescente como estratégia discursiva e enquadramento político. “Essa luta passou a ser parte da batalha cultural que retoma o marxismo como inimigo imaginário para dar lugar às principais estratégias políticas do neoconservadorismo em nossos dias”, explica Vaggioni. Ele acrescenta que o comunismo segue sendo uma ameaça – e, também, aqueles que seriam os portadores de sua ideologia: os movimentos feministas e LGBT+, considerados indistinguíveis do marxismo.
Para o professor argentino, embora a luta contra a “ideologia de gênero” tenha sido criada e divulgada pelos conservadores católicos e evangélicos, em alguns anos passou a abarcar setores fora do campo religioso. A negação dos direitos sexuais e reprodutivos, defende Vaggioni, está relacionada não apenas à necessidade de sustentar valores cristãos, mas também na recusa a uma suposta nova agenda do marxismo cultural. “Hoje, é possível opor-se às demandas feministas e LGBTQIAPN+ desde identidades seculares – preocupadas mais com o suposto ressurgimento do comunismo e de sua pretensa vocação para as mudanças culturais – mais comumente que pela ameaça a ideários religiosos”, sustenta.
Juan Marco Vaggioni conta que, em vários países da América Latina, a Argentina entre eles, a luta contra a “ideologia de gênero” foi absorvida por partidos políticos, em geral de ultradireita, que encontram na oposição ao progressismo, à esquerda e ao comunismo um caminho para forjar novas alianças. “Não apenas se busca proteger a família e a vida, mas também solidificar uma ordem econômica privatista e interessada em desmantelar o Estado”, salienta o pesquisador. Segundo ele, a articulação do neoconservadorismo nos partidos de ultradireita extrapola a questão dos direitos sexuais e reprodutivos e se estende à formulação de proposta neoliberal e antiprogressista, conectando os assuntos culturais aos econômicos.
Particularmente sobre a Argentina, Juan Marco Vaggioni informa que está em evidência o caráter ofensivo da batalha cultural e da luta contra a “ideologia de gênero”. “O objetivo da ultradireita é restituir uma ordem legal e moral do passado, pretensamente perdida nos dias atuais. “Constrói-se aí uma concepção de futuro por meio de utopias restauradoras de uma família e de uma sexualidade que nunca existiram. Em outros termos, a batalha cultural implica a restauração de um passado inexistente como forma de articular as vontades e de dotar de novos sentidos e impactos a agenda neoconservadora”, ele conclui. Juan Vaggioni falará em mesa no dia 17, às 14h.
Erosão das democracias
O projeto de residência As políticas contra o gênero e os processos de (des)democratização no Brasil, do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (Ieat) da UFMG, consiste em um conjunto de atividades acadêmicas de pesquisa, ensino e extensão com base no estudo sistemático da organização da ofensiva antigênero – e seu caráter transdisciplinar e transnacional – como um fenômeno tensional de erosão das democracias e de produção de autocracias junto às instituições e a própria sociedade. O projeto realizou sistematização analítica de dados coletados. A meta é a compreensão da centralidade do gênero nos processos de desdemocratização, da produção de políticas públicas ultraconservadoras e neoliberais e nas dimensões dos processos de subjetivação política.