O Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH-UFMG) da Universidade Federal de Minas Gerais vêm a público manifestar sua discordância em relação ao conteúdo da notícia “Travestis e transexuais são mais ricas do que a população média” divulgada pelo site Guia Gay BH do dia 26 de fevereiro de 2016.
Em nossa perspectiva, ao se utilizar de dados sobre renda e escolaridade, a matéria o faz de forma descontextualizada. Com abordagem sensacionalista, a notícia constrói uma falsa ideia sobre a situação de travestis e transexuais, sobretudo daquelas que exercem trabalho sexual em Belo Horizonte e região metropolitana (foco da pesquisa), minimizando, assim, o debate público sobre direitos e cidadania desta população.
Advertimos para dois pontos não observados pelo autor da reportagem, que tornam sua leitura frágil e irresponsavel: 1) a analogia estabelecida entre a população de Belo Horizonte e a amostra da pesquisa não se sustenta, uma vez que não há parâmetro estatístico que justifique a comparação que o mesmo propõe; 2) embora haja possibilidade de diálogo e correlação com outros instrumentos, tais análises não podem ser feitas de modo simplista, desconsiderando o processo histórico de inferiorização social e estigmatização que, infelizmente, tem marcado as experiências de travestis e transexuais.
A pesquisa buscou traçar um perfil deste público a partir da investigação dos aspectos Saúde, Educação, Assistência Social, Segurança Pública, Emprego e Renda, de modo que tais informações possibilitassem ampliar nosso entendimento sobre a questão da violência e dos contextos de vulnerabilidade no campo das políticas públicas. Nesse sentido, destacamos que é extremamente importante se fazer uma leitura articulada destas variáveis, de modo que os dados não sejam interpretados desprezando toda a complexidade que os envolve.
Consideremos, por exemplo, os eixos abordados na referida matéria: as esferas de renda e educação.
Sobre o aspecto renda: por auferirem rendimentos superiores à média da população, se avaliada isoladamente, é possível que se tenha a falsa impressão de que parte considerável do público pesquisado poderia ser confortavelmente designado como pertencente à classe média ou classe média alta. No entanto, com uma reflexão um pouco mais criteriosa, facilmente verificaríamos o equívoco dessa suposição.
Em nossa pesquisa, tivemos como eixo o trabalho sexual, ou seja, a todo momento estivemos nos referindo a uma categoria profissional vinculada à informalidade, sem quaisquer garantias trabalhistas. Estivemos nos referindo a um âmbito que, por suas características político-instituídas, tende a expor suas profissionais a situações de violências, chantagens e extorsões. Além disso, é necessário pontuar que esta é uma carreira curta, o que traz instabilidade na remuneração das profissionais desta área com o passar do tempo.
Ao tomar como referência os valores declarados pelas participantes, é importante considerar também o quanto sua renda fica comprometida com seus gastos cotidianos: a manutenção e construção de uma identidade feminina marca suas experiências, na maioria das vezes, por um alto e constante investimento de capital no campo da estética e beleza – requisitos fundamentais em sua atividade laboral. Somando-se esses valores aos demais dispêndios envolvidos em seus processos de modificação e construção corporal, verifica-se que, embora parte significativa dessas pessoas possam adquirir uma renda relativamente alta no mercado sexual, os gastos envolvidos nesses processos também são muito grandes.
Vale pontuar ainda que, mesmo que parte das pesquisadas possuam um rendimento considerável, essa suposta vantagem não necessariamente implica em um alto poder aquisitivo, uma vez que os efeitos da transfobia podem inflacionar seu custo de vida, tornando seu acesso a determinados bens e serviços muito mais oneroso do que se observa em geral – fato que é corroborado ao nos voltarmos para esferas como moradia, lazer, saúde e educação, âmbitos que permanecem como um campo cuja trajetória social revela uma incorporação precária de um certo modelo de bem-estar.
Sobre escolaridade: no que concerne à questão educacional, sem entramos no debate sobre os indicadores, o motivo que pode nos levar a equívocos também está vinculado ao modelo de comparação analítica forçosamente usada na citada matéria divulgada. Para além das diferenças metodológicas, contrapor nosso levantamento aos realizados por órgãos oficiais não se mostra uma boa estratégia a priori por uma razão muito simples: em geral, as pesquisas feitas no âmbito do Estado não levam em consideração a pluralidade das identidades de gênero. Salvo pouquíssimas exceções, do ponto de vista político institucional, é fácil perceber que não tem sido uma preocupação governamental compreender em que medida a identidade de gênero pode ser um fator a obstaculizar o acesso à educação.
Assim, ainda que dados oficiais sejam reconhecidamente relativos à população em geral, tendo em vista os objetivos para os quais foram construídos, tais levantamentos tendem a operar com recortes (de gênero) que silenciam a possibilidade de análise dos fenômenos – especialmente àqueles vinculados à transfobia institucional nas trajetórias formativas das pessoas.
Percebe-se, portanto, que a forma como os dados foram trabalhados pelo responsável da matéria, ao priorizar informações de forma rasa e descontextualizada, acaba por inviabilizar possíveis reflexões que articulem os próprios aspectos de renda e escolaridade.
Por fim, apenas a título de esclarecimento, gostaríamos de destacar que a referida pesquisa ainda está em andamento. Nessa primeira fase, como é possível perceber, tratou-se tão somente do levantamento e disponibilização de dados quantitativos. Porém, para este ano, estão previstas a realização de análises qualitativas e o cruzamento de variáveis do material coletado – momento em que poderemos pormenorizar as relações e conclusões a que temos chegado.
No mais, nos solidarizamos e fazemos coro às críticas feitas até aqui. Esperamos dar continuidade aos nossos trabalhos na expectativa de contribuir para que o debate envolvendo questões de gênero e sexualidade não seja tratado da maneira reducionista e equivocada como, por vezes, temos observado.
Belo Horizonte, 04 de março de 2016.
Equipe Projeto Trans
Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT
Universidade Federal de Minas Gerais