Tradução de: Ojo público, por Susana Chávez
Disponível em: https://ojo-publico.com/5128/nada-que-curar-la-diversidad-no-es-una-enfermedad
Nada a Curar: Diversidade não é uma Doença
O Ministério da Saúde (Minsa) publicou um decreto supremo classificando as diversidades sexuais e de gênero como doenças mentais. Embora o setor afirme que a modificação visa apenas garantir a atenção integral às pessoas LGBTIQ+ no Plano Essencial de Garantia de Saúde, a especialista Susana Chávez adverte que a norma apresenta múltiplos riscos para essa população. “Além disso, o Minsa deve explicar se já possui um protocolo para sua implementação. Se sim, estaria baseando suas intervenções em pseudociência”, argumenta.
“Retrocesso”. Especialistas apontam que o Decreto Supremo Nº 009-2024-SA expõe a população LGBTIQ+ a múltiplas formas de violência e discriminação.
Ilustração: Shutterstock
No Peru, nos acostumamos a que as propostas mais bizarras no campo da sexualidade e reprodução venham do Congresso da República. Há muitos exemplos: o projeto de lei sobre adoção pré-natal, a proposta sobre luto gestacional, a lei que elimina a linguagem inclusiva ou a iniciativa que buscava mudar o nome do Ministério da Mulher para o da Família, entre outros.
O Executivo — e, em particular, o Ministério da Saúde (Minsa) — não se integrou à corrente regional de avanços na conceptualização desses direitos. No entanto, é surpreendente que esse setor tenha sido o promotor de uma recente norma que faz o país regredir, pelo menos, três décadas, ao definir a orientação sexual e a identidade de gênero como patologias de saúde mental.
Com a aprovação do Decreto Supremo Nº 009-2024-SA, o Plano Essencial de Garantia de Saúde (PEAS) incluiu definições como “transexualismo”, “travestismo de duplo papel”, “transtorno de identidade de gênero na infância”, “outros transtornos de identidade de gênero”, “transtorno de identidade de gênero não especificado”, “travestismo fetichista” e “orientação sexual egodistônica”.
É difícil entender a necessidade dessa inclusão e quais resultados se esperam de intervenções sanitárias baseadas nelas. As graves consequências para as pessoas LGBTIQ+ — com especial ênfase nas pessoas trans —, por outro lado, são evidentes: sua vulnerabilidade aumenta ao expô-las a múltiplas formas de violência e discriminação, com uma norma que legitima preconceitos e estigmas.
”ESTA NOVA NORMA LEGITIMA PRECONCEITOS E ESTIGMAS CONTRA AS PESSOAS LGBTIQ+”.
Até agora, o Minsa não forneceu informações precisas sobre os alcances dessa modificação. No entanto, planos de garantia de saúde como esses devem ser acompanhados por protocolos que detalhem, entre outras coisas, quais procedimentos estão sendo considerados.
Os mesmos devem ser eficazes, eficientes e, sobretudo, respeitar a dignidade das pessoas. E, claro, devem estar baseados em evidências respaldadas pela comunidade científica. Por isso, muitos deles se baseiam nas recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Isso nos leva a uma pergunta importante: o Minsa e, especialmente, a equipe técnica da Direção Nacional de Saúde Mental já possuem esses protocolos? Uma resposta imediata do setor sobre o assunto é necessária, pois, se for o caso, estaria baseando suas intervenções em pseudociência e de má fé.
Os diagnósticos em questão:
Não é preciso procurar muito na Internet para encontrar artigos interessantes e de fontes seguras que abordam os diagnósticos introduzidos pelo Minsa em seu sistema de registro. Como vários especialistas e organizações mencionaram, as “novas” definições incluídas pelo Decreto Supremo são, na verdade, categorias antigas que foram excluídas dos classificadores de patologias de forma progressiva, há mais de três décadas.
Um desses artigos, de Santiago Peidro, foi publicado na Revista de Ética e Direito. Nele, o psicólogo argentino explica que o sistema de classificação de saúde mental se baseia em dois instrumentos: a Classificação Internacional de Doenças (CID) da OMS e o Manual de Diagnóstico de Saúde Mental (DSM) da Associação Psiquiátrica Americana. Como era de se esperar, ao longo do tempo, ambos os sistemas foram se adaptando.
A primeira edição do DSM foi publicada em 1952, “como uma variante do CID-6”. Nessa primeira versão, a homossexualidade foi incluída como uma doença mental “com base em teorias sem evidência científica que propunham uma conexão entre homossexualidade e desajustes psicológicos”. Em outras palavras, considerava-se que a homossexualidade era um sintoma de uma doença mental.
”AS DEFINIÇÕES DO DECRETO SÃO CATEGORIAS ANTIGAS, QUE JÁ FORAM EXCLUÍDAS DOS CLASSIFICADORES DE PATOLOGIAS”.
Duas décadas depois, a nova versão do manual de diagnóstico — ou seja, o DSM-II, publicado em 1973 — eliminou a homossexualidade como categoria diagnóstica na seção de “desvios sexuais”. Ao que parece, como resultado dos protestos do Orgulho Gay.
Um ano depois, foi introduzido o termo “perturbações na orientação sexual” e, na terceira edição do manual, foi incluído o diagnóstico de “homossexualidade egodistônica”, relacionado ao desconforto que as pessoas podem sentir devido à sua orientação sexual. No entanto, esses diagnósticos foram eliminados da versão revisada dessa edição do manual, aspecto que não mudou nas versões e edições subsequentes.
A exclusão da homossexualidade na Classificação Internacional de Doenças da OMS levou mais tempo: ocorreu em 1992, com a CID-10. No caso da transexualidade, foi concretizada com a CID-11, publicada em 2019. Então, por que o Peru reincorpora essa classificação que, em breve, não existirá mais no novo CID-11? Este é um aspecto que o Minsa também dever.
La identidade vs. o diagnóstico:
A situação do Peru contrasta com os avanços legais de países vizinhos no reconhecimento da identidade de gênero e da orientação sexual, como categorias protegidas que definem as pessoas, e não como doenças. De fato, este é um dos principais desafios para erradicar a discriminação e a violência estrutural contra as pessoas LGBTIQ+ no país.
O único passo dado pelo Estado peruano nesse sentido foi a publicação, em 2016, da “Norma Técnica de Saúde para Atenção Integral da População Transfeminina para Prevenção e Controle de Infecções Sexualmente Transmissíveis e HIV/AIDS”.
Isso permite que as mulheres trans tenham acesso ao controle médico e hormônios para realizar mudanças corporais femininas e, assim, reafirmar sua identidade de gênero. Como pode ser observado, este é apenas um avanço superficial em um contexto de precariedade para a comunidade LGBTIQ+ no Peru.
”PERU CONTRASTA COM OS AVANÇOS REGIONAIS EM TEMAS DE IDENTIDADE DE GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL”.
Isso não ignora os esforços realizados, há quase uma década, por funcionários que conseguiram a aprovação dessa norma, levando em consideração os riscos que as mulheres trans enfrentam para acessar serviços de saúde de qualidade. E, ainda mais, quando se trata de modificar seus corpos.
Agora, longe de avançar, o novo decreto supremo do Ministério da Saúde (Minsa) dificulta o acesso à saúde e reafirma o conceito de doença. Negando, em outras palavras, o pequeno avanço que aquela norma tinha e aumentando a vulnerabilidade para essa população.
Segundo a CIDH, “os Estados Membros da OEA estão progressivamente avançando para a adoção de medidas que despatologizam as identidades e expressões de gênero diversas”. Contra a corrente, o Peru — de maneira aberta e desavergonhada — fez definições oficiais que são patologizantes e discriminatórias. Opta, além disso, por se isolar, sem a intenção de incorporar a CID-11 nos protocolos nacionais.
Nesse cenário, não resta dúvida de que, ao comparar as normas peruanas nessas questões com as de outros países, provavelmente seríamos mais comparáveis aos que criminalizam a diversidade sexual.
Os avanços de nossos vizinhos:
Neste panorama de retrocesso, é necessário olhar com esperança o que os países vizinhos alcançaram. Na região, algumas nações aprovaram políticas públicas relacionadas à identidade de gênero e à orientação sexual, que, em alguns casos, têm mais de 20 anos de vigência.
Argentina, Equador, Bolívia e Chile não são países estranhos à nossa cultura ou desenvolvimento. Eles reconhecem ambas como categorias protegidas, o que lhes permitiu criar sistemas administrativos para codificar informações e fortalecer políticas públicas em seus territórios.
Além disso, eles adotaram classificações que permitem o reconhecimento do nome social das pessoas, reduzindo significativamente os maus-tratos e diferentes formas de discriminação contra a população trans.
No Equador, por exemplo, as estratégias públicas para atender às necessidades de saúde da população LGBTI incluem um Registro Diário Automatizado de Consultas e Atendimentos Ambulatoriais com as definições “orientação sexual”, “identidade de gênero” e “intersexo”. Ou seja, a identidade das pessoas é registrada.
”A REGIÃO TEM MÚLTIPLOS EXEMPLOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE IDENTIDADE DE GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL”.
Este mesmo registro fornece informações estatísticas ágeis, oportunas e eficientes, que alimentam a evidência da situação de saúde da população LGBTI. Dessa forma, eles têm perfis epidemiológicos e fortalecem a redução de barreiras, promovendo a igualdade de gênero, a igualdade de direitos e a equidade em saúde.
Argentina, por sua vez, facilitou o registro da identidade em seu sistema de saúde, por meio da Lei de Identidade de Gênero. Sua política estatal permite registrar o sexo ao nascimento e, no caso da categoria de gênero, é possível selecionar cisgênero, transgênero ou as variáveis TTNB (trans, travestis e não-binários).
Isso permitiu ao Ministério da Saúde desse país contar com um documento de “Recomendações para a Atenção Integral à Saúde de Crianças e Adolescentes Trans, Travestis e Não-binários”. Ou seja, uma série de diretrizes para abordar a saúde de crianças e adolescentes trans, travestis e não-binários de maneira integral, que reconhece e respeita a diversidade de gênero, sexual e corporal.
No caso do Chile, o Ministério da Saúde possui um documento denominado “Orientações Técnicas para Atualizar ou Elaborar Protocolo de Tratamento e Registro para Pessoas Trans, no âmbito da Circular Nº 21”. Isso serve de base para a formulação de registros e protocolos usados na rede pública de saúde, com o propósito de promover atendimentos centrados no tratamento digno e não discriminatório.
”AS PESSOAS LGBTIQ+ MERECEM SER TRATADAS COM RESPEITO E SEM DISCRIMINAÇÃO, NÃO HÁ NADA A CURAR NELES”.
Na Bolívia, por sua vez, foi aprovada a “Norma de Atenção Integral à População LGBTIQ+ em Estabelecimentos de Saúde”. Esta organiza a prestação de serviços integrados a pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros, intersexuais, queers e diversas (LGBTIQ+), garantindo o respeito aos seus direitos humanos e garantindo que os centros de saúde funcionem como espaços seguros, livres de estigma, discriminação e violência.
Estes exemplos mostram como alguns países da região reconhecem que a identidade é uma condição das pessoas. Por isso, rotulá-la como uma doença mental é uma forma de patologizar as identidades, ou seja, as pessoas por serem quem são.
Mesmo que o Minsa tenha indicado que a intenção do Decreto Supremo Nº 009-2024-SA é fornecer atenção à saúde mental, não se pode e nem se deve justificar a patologização das pessoas LGBTIQ+ sob conceitos de saúde, nem de suposta “proteção”.
Do contrário, todas as gestantes deveriam ser registradas como doentes, pelo único motivo de estarem grávidas: todos sabemos que a gestação não é uma doença e as complicações têm seu próprio registro.
As pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexuais e outras diversidades merecem, como qualquer um de nós, ser tratadas com respeito e sem discriminação. Em outras palavras, não há nada a curar nelas. O que devemos a elas é o reconhecimento de seus direitos e dignidade. Entre estes, a atenção às suas necessidades de saúde para alcançar algo tão básico quanto uma vida saudável.