Uma conversa sobre o processo criativo da Festa-Espetáculo No soy un maricón
Entrevista: João Paulo Tiago (Nuh/UFMG) – Fotos: Toda Deseo / Saiu Andando
NUH: Primeiramente, poderiam falar da formação do grupo Toda Deseo? Como começaram?
TODA DESEO: A TODA DESEO é um grupo novo. Tanto para a cidade quanto para nós mesmos. Ainda estamos começando e têm muitas coisas que ainda estamos entendendo, nomeando e pesquisando. Estamos dando os primeiros passos ainda. No primeiro semestre de 2013, nos juntamos para montarmos um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) no curso de graduação em Teatro da UFMG.
Era uma ideia nova e um tanto “fora” dos formatos da academia que, usualmente, os TCCs costumam ter. De início, sabíamos que se tratava de um trabalho que seria em um espaço de festa. Tentamos até estrear em boates da cidade de Belo Horizonte. Neste mesmo semestre – o Professor Doutor Antônio Hildebrando – a TODA DESEO deve muito a ele, conseguiu estruturar um pequeno polo de estudos sobre arte e homossexualidade, até mesmo para acompanhar teoricamente a criação. Começamos então os estudos e os trabalhos.
Durante o semestre, para arrecadar verba para o espetáculo que estava em criação, começamos a nos “montar” e criamos os nossos primeiros shows-fechativos (as FECHAÇÕES), que são intervenções em festas e eventos, onde a gente dança, dubla, e levanta cartazes e bandeiras, tocando em questões “mais diretamente” políticas no meio da festa. A reação das pessoas é incrível. Então, dado o sucesso dessa experiência, começamos a fazer estes shows com certa frequência. Foi até difícil conciliar os horários de ensaio das FECHAÇÕES com os da FESTA-ESPETÁCULO, até por que as FECHAÇÕES são muito diferentes do que é a proposta da FESTA-ESPETÁCULO.
Na verdade, acabamos utilizando as FECHAÇÕES para entender um pouco mais do contato com o público, ver o que estava funcionando ou não. Por fim,estas FECHAÇÕES viraram uma escola pra gente para que nós pudéssemos nos entender enquanto coletivo e também do trabalho que estávamos elaborando. Uma loucura! Vimos que para a FESTA-ESPETÁCULO tínhamos muito trabalho! Nesse caminho tivemos a sorte de encontramos um monte de parceirxs e amigxs, que sem eles não teríamos dado conta de tantas coisas.
O trabalho começou a agregar pessoas e vimos que a coisa estava ficando séria. Aí, de repente, quase como um ato prematuro diante a necessidade de termos um nome, e do desejo de criarmos um coletivo de artistas preocupados com as questões culturais e políticas que combatam a heteronormatividade – surgiu a TODA DESEO. O nome é uma referência à produtora do cineasta Pedro Almodóvar, a “El deseo”, por dois motivos: primeiro que o trabalho “No soy um maricón” partiu, inicialmente, de uma leitura e apreciação de suas obras fílmicas e literárias; segundo porque a palavra DESEO, a nosso ver, nomeia com exatidão o impulso e afeto maior com o trabalho do grupo: o desejo de trafegar pelas zonas de investigação do corpo pelo viés da discussão dos gêneros. Já o TODA faz uma brincadeira com o gênero, pois no nosso caso trabalhamos com as figuras do “Universo Trans” (travestis e transexuais, drags, transformistas, etc), e com as possibilidades de transformação do corpo. Até agora estamos focando nas Travestis e Transexuais.
Estreamos a FESTA-ESPETÁCULO em julho de 2013, no bar Nelson Bordello, sem termos “finalizado”por completo o espetáculo. Na verdade, achamos que até hoje não finalizamos. Por se tratar de uma festa e um encontro, mudamos sempre alguma coisa. Esse processo inacabado para a FESTA-ESPETÁCULO mantém, de certa forma, o trabalho vivo. De lá até aqui, fizemos algumas apresentações com o “No soy um maricón”, participando da Bienal de Jovens Criadores em Salvador, do Ciclo de debates, podendo amadurecer o trabalho; e agora estamos pela primeira vez, em temporada no CentoeQuatro. O trabalho está apenas no inicio. Estamos começando, mas ele já se mostra bastante potente pra gente.
NUH: Poderiam falar sobre o processo criativo do espetáculo? De onde surgiu a vontade de trabalhar com o tema do universo trans? Vocês tiveram contato direto com travestis, foram a campo?
TD: Bom, a FESTA-ESPETÁCULO primeiro foi um TCC, então, ele foi criado dentro das salas do curso de teatro. Era a maior “fechação” nos corredores e áreas externas da escola. Criamos a FESTA-ESPETÁCULO em um espaço de tempo super curto. Tínhamos algumas músicas que gostávamos, algumas histórias que ouvíamos, algumas referências das artes plásticas e de outras áreas, e muitos vídeos na internet e uma ideia-plataforma: fazer POCKETS-SHOWS com as figuras das travestis. Partimos das apreciações das figuras Trans nas obras fílmicas do cineasta Almodóvar. Vimos alguns filmes que continham essas figuras. Fizemos algumas oficinas: de carão-dublagem, salto alto, maquiagem. Pedimos doação de roupas, saltos e adereços. Em cada ensaio colocávamos uma roupa, uma saia ou um vestido – uma montagem despretensiosa. Partilhamos nossas experiências anteriores e fomos construindo, criando, improvisando. Dentro da sala acabamos por criar um ritmo de trabalho muito próprio: cada um, quando havia necessidade ou interesse, conduzia parte do processo de ensaio. Surgiam ideias que eram agregadas, outras descartadas, sempre num movimento justo com a proposta.
Nosso contato com as Travestis vem bem antes do espetáculo e, se houve um “campo”, foram as nossas experiências já com este universo. Alguns dos integrantes iam com frequência à Praça Raul Soares, situada no baixo-centro de Belo Horizonte. Lá pudemos ver muitas travestis; mas vimos também muitos meninxs dançando na praça, em pequenas disputas de grupo. Como dançamos muito na FESTA-ESPETÁCULO e nas FECHAÇÕES, isso acabou também por ser uma referência. As figuras que criamos são ficcionais, mas contam histórias reais.
NUH: No Soy um maricón é apresentado como uma Festa-Espetáculo. O que seria esse conceito e no que ele difere de uma peça teatral convencional?
TD: Não sei se ainda temos este conceito definido.O que a gente está tentando fazer é trazer a linguagem artística que acontece nos shows de travestis para a cena teatral, por que somos formados em teatro. Em nossas escolas de teatro não vimos nada ou quase nada sobre essas linguagens. Na sala de ensaio, tínhamos conversas longas sobre teatralidade, dramaturgia, cena e as discussões políticas que circundavam as figuras trans, entre outras coisas; e nos pareceu que nada seria mais interessante que levar o “teatro” para dentro dessa experiência. Aí aconteceu a FESTA, o encontro.
A ideia da FESTA-ESPETÁCULO é criarmos uma atmosfera festiva, semelhante às boates e bares, que nos possibilite a aproximação com o público e empatia . Só que de fato fazemos isso. Fazemos uma festa de verdade e nela criamos o Espetáculo-Festa. A experiência da festa traz um clima já “subversivo”, “descontraído” e não por isso despolitizado. Somos atores-performers, não fazemos sujeitos-personagens, mas podemos dizer que há drama. Neste espaço todxs participam, é uma troca. Festas acontecem coletivamente, e este é o clima que queremos trazer ao “No soy um maricón”. Todxs são importantes, e o que estávamos falando é para todxs, como se tocássemos uma música em uma festa.
NUH: Vocês utilizam referências do cinema, música pop, virais da internet entre outros elementos da cultura pop. Essa mistura faz o espetáculo adquirir uma estrutura de musical?
TD: A estrutura de musical acontece porque em alguns momentos da FESTA-ESPETÁCULO fazemos POCKET-SHOWS, não por causa das referências. Dançamos e dublamos, talvez isso faça lembrar a estrutura de musical. Mas podemos dizer que se pareça também com o Teatro de Revista, o Vaudeville, enfim, essa estrutura esbarra em muitas outras formas do fazer artístico. Mas como estamos experimentando uma nova forma de entender o teatro e seus desdobramentos em outras experiências humanas, estamos dando enfoque para a ideia da FESTA-ESPETÁCULO. Não sabemos o real efeito da mistura de referências, elas acontecem no ato e são capturadas sempre de formas variadas pelo público-participante.
NUH: Como tem sido a repercussão de No Soy um maricón em geral e especialmente com o público trans e das travestis? Como elas têm recebido o trabalho de vocês?
TD: Tem sido bastante interessante. A repercussão acontece de diversas formas. As pessoas ficam sensibilizadas. Algumas extremamente alegres. Já vimos pessoas chorando. Em Salvador tivemos que abrir o microfone (por causa de um desconforto geral de todos os participantes da Bienal) e, de repente, a peça virou um protesto geral. Sentimos que há uma vontade, um desejo com este tema vindo do público. Percebemos em contato com o público que a FESTA-ESPETÁCULO é bem direta na questão de Direitos humanos com as Travestis, mas não para aí:parece atingir vários outros pontos de vistas sociais, a forma como organizamos a vida. A experiência mais reveladora pra gente foi a participação do Ciclo de Debates: Direitos negados de Travestis e transexuais. Neste evento praticamente apresentamos para este público. Foi emocionante e estávamos bem nervosos.
Mas acabou sendo bem recebido. Não somente por que é uma FESTA, mas porque abrimos espaço sobre o que é a representação de Travestis e Transexuais, tanto na arte quanto na sociedade. E isso fica claro.
Na FESTA-ESPETÁCULO temos a preocupação em sermos respeitosos com a comunidade e estamos sempre escutando as observações desse público, uma vez que a cena que fazemos é visivelmente politizada. Neste dia mesmo escutamos muitas críticas. Levamos à sala de ensaio e então discutimos. Algumas pontuações feitas pelas Travestis foram feitas a risca. E queremos escutar mais essa população. Queremos que elas venham ao teatro. Fazemos para todxs, mas essas figuras são sempre nossos alvos maiores; queremos que elas sempre estejam em nossas apresentações.
NUH: Vocês acreditam que quando estão no palco fazem algum tipo de ação política na questão dos direitos LGBTs? A Toda Deseo se posiciona de forma militante nesse sentido, através do espetáculo? Se sim, poderiam falar dessa postura?
TD: O encontro que propomos é também uma ação política. Ou talvez, o político é o próprio encontro. Para nós é até complicado separar a cena de seu potencial “ativista”. Estamos entendendo que cena teatral sempre tem um caráter político. Sempre teve. Até porque estamos discutindo os próprios critérios da “representação”.
Pensando acerca do processo mais amplo de produção dessas categorias sexuais e da diferenciação de gênero que acontece na sociedade, o “teatro” representa um ideal social, formulado a partir da ideologia dominante em determinada localidade e época. Contudo, o “teatro” pode também atuar produzindo várias formas sobre as construções de gênero, visto que nada que ocorre em cena pode ser tomado como natural. Propormos uma cena que busca desconstruir o machismo descaradamente, não escondemos isso; a nossa cena sonha por uma sociedade que valoriza a pluralidade, a diferença e os Direitos Humanos. Há no espetáculo-festa um posicionamento militante na sua própria ideia de teatro e das bases da representação para essas categorias sexuais.
NUH: Como atores e atrizes, o que significa pra vocês se travestirem de forma feminina?
TD: A proposta de nos travestirmos nessas figuras ainda é muito nova – mesmo que alguns de nós já tenham tido alguma experiência com o travestimento. Novo porque estamos experimentando uma aproximação real e potente com tudo que esse universo carrega, aliada a uma proposta artística-performática. A MONTAGEM ESTRATÉGICA que fazemos busca uma identificação tacitamente estética e comportamental. Mas não somos travestis, somos atores-performers. Nosso jogo é um movimento contínuo entre parecer-ser e um distanciar-se. Muitas vezes, principalmente nas FECHAÇÕES, somos confundidos com travestis reais. E esse fator, utilizado conscientemente (mesmo que nem sempre seja consciente), enriquece o jogo da performance. Não nos identificamos com a ideia de “personagens travestis”, não temos nomes, histórias ficcionais, enfim, fazemos um jogo com a performance de gênero dessas figuras, nos colocamos em reais situações em que sejamos todxs possíveis.
Além disso, há uma atração afetiva por essa MONTAGEM. Somos e estamos fascinados pelas técnicas de transformação: maquiagem, modelagem de perucas, confecção de adereços, etc. Sempre nos surpreendemos diante do espelho: de repente umx outrx aparece. O processo de montagem é muito atraente, envolve uma série de coisas. Ademais, essa transformação começa muito antes, em casa, no camarim, no trajeto até o espaço, isso porque ela envolve muito afeto, uma preparação interna pra coisa.
Mas assumir essa figura carrega consigo algumas responsabilidades. Há, principalmente nas FECHAÇÕES, algumas pessoas que fazem piadas com um “q” homofóbico, outras que nos tocam como se fossemos objetos de “uso livre”, e estamos sempre atentos com isso: não deixamos que nos toquem e nem que esse tipo de piada-comentário preconceituoso aconteça. Afinal, representamos as figuras das travestis e é principalmente por elas que fazemos tudo. Seria bastante incoerente com o trabalho se não estivéssemos sempre atentos com essas estressantes situações.
Há também um risco em nossa proposta, porque afinal estamos lidando com figuras marginalizadas, non-gratas em muitas situações-locais. Em nossas FECHAÇÕES não nos montamos no local da apresentação, fazemos a montagem em alguma casa, geralmente a mais próxima do local, e saímos de táxi. O jogo com o outro começa já da porta de casa para fora: com os porteiros, os vizinhos, o taxista, os pedestres, como disse, somos muito confundidos com reais travestis. E não seríamos mesmo para os outros nesses contextos?