Reportagem original disponível em: https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2024/05/14/como-posts-anti-lgbt-usam-a-defesa-da-familia-para-espalhar-desinformacao-e-odio-no-facebook
Dois conceitos — nunca oficialmente definidos pela ciência nem pela academia, mas amplamente conhecidos nas Américas (especialmente a cristã) — circulam nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens hoje em dia, acompanhando uma série de narrativas desinformativas que têm como objetivo atacar a comunidade LGBT+ e reduzir seus direitos.
Esta reportagem, a primeira de uma série realizada pelo consórcio formado por Lupa, Univision, Data Crítica e o Instituto Democracia Digital das Américas (DDIA) e será publicada nesta semana do Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, analisou mais de 11 mil publicações e traz à luz dados e exemplos concretos de como as expressões “família tradicional” e “desenho original da família” foram apropriadas pelos movimentos ultrarreligiosos e pelas entidades super polarizadas do continente para promover desinformação e ódio contra homossexuais e pessoas trans.
Se até recentemente essas duas expressões costumavam ser ouvidas entre os católicos em momentos de fé e celebração de suas tradições, agora são mais frequentes em publicações online que, sem demonstrar nenhum dado ou fato comprovável, amplificam a teoria conspiratória de que as pessoas LGBT+ se uniram não só nas Américas, mas em todo o planeta, para atacar — e quiçá acabar — com a “família tradicional” composta por um homem e uma mulher cisgêneros e heterossexuais.
Como se sabe — e confirma o verbete da Enciclopédia Britannica Online —, o movimento LGBT+ “advoga pela igualdade de direitos para lésbicas, gays [homens homossexuais], bissexuais, pessoas transgêneros e pessoas queer” e toda a diversidade de gênero e sexual existente. O verbete ainda cita que esse movimento “busca eliminar as leis de sodomia; e exige o fim da discriminação contra pessoas LGBT+ no emprego, crédito, moradia, locais públicos e outras áreas da vida”. Não tem como objetivo, portanto, atacar os heterossexuais nem modificar seu estilo de vida. Apenas busca o direito de coexistir com eles em pé de igualdade.
Na internet, no entanto, publicações mencionando a “família tradicional” ou o “desenho original da família” passaram a vir acompanhadas de vídeos e imagens que sugerem que as pessoas LGBT+ são um perigo — principalmente para as crianças — e que estão alinhadas com partidos políticos, ONGs, escolas e até Hollywood para derrotar, segundo eles, o modelo de vida proposto por Deus no Jardim do Éden ou por José e Maria, quando deram à luz seu filho, Jesus Cristo.
Investigar as publicações feitas no Facebook sobre a “família tradicional” e o “desenho original da família” é encontrar histórias impactantes, que demonstram não apenas a construção de narrativas enganosas, conspiratórias e odiosas, mas também descobrir que elas circulam livremente pelas Américas. Que superam barreiras geográficas e idiomáticas, ignoram leis que já garantem os direitos civis das pessoas LGBT+ e passam incólumes aos termos de uso que as big techs estabeleceram para suas próprias plataformas. É comum ver um post, imagem ou vídeo nascer em um país e, com pouca ou nenhuma adaptação, ser replicado em outro, amplificando a narrativa de desinformação e o discurso de ódio.
Um post, 15 países, 48 horas
O perfil do Facebook intitulado Cristiano Conservador é um exemplo claro disso. Às 13h19 do dia 20 de julho de 2023, a página que tinha mais de 217 mil seguidores (hoje mais de 243 mil) se juntou à onda de ataques que se formava no Facebook contra o então recentemente lançado filme Barbie. “[Hollywood é uma] Caverna de ladrões e covil de pedófilos”, disparou, em espanhol, o administrador da página, indivíduo que, segundo dados do próprio Facebook, escreve dos Estados Unidos.
A frase acusatória do Cristiano Conservador vinha acompanhada de uma lista que supostamente resumia para os usuários da plataforma tudo o que o dono da página acreditava ter visto de ruim naquele filme.
“A mensagem da Barbie [é]:
– Os homens são inúteis.
– A família tradicional é irrelevante.
– O que faz uma mulher ser mulher é sua beleza física.
– Qualquer um pode ser uma Barbie, até mesmo um homem (“Doctor Barbie” é trans).
– O futuro é feminista e sexualmente diverso; as mulheres estão no comando, os homens se submetem.
≥ Slogan-chave: “Ela é tudo; Ele é apenas Ken”, que é um eufemismo para “ele só é bom para o sexo”.
O post de desabafo e alerta feito pelo Cristiano Conservador poderia ter sido apenas mais um na enorme quantidade (confira a base completa) de publicações que surgiram quando o filme da boneca mais famosa do planeta foi lançado. Também poderia ter sido apenas mais um ataque dos conservadores e religiosos ao que consideram ser a destruição da chamada “família tradicional”, aquela que é composta por um homem, uma mulher e seus filhos cisgêneros e heterossexuais — nunca por homossexuais ou trans, por exemplo.
Mas dados extraídos do CrowdTangle (ferramenta da Meta que permite analisar postagens feitas no Facebook) mostram que essa publicação do Cristiano Conservador gerou não apenas um grande número de reações, mas também foi amplamente republicada — em português e inglês — pelas Américas, provocando uma onda de reações anti-LGBT+ em todo o continente.
Quarenta e oito horas depois de o Cristiano Conservador publicar sua análise de Barbie, o post já havia alcançado nada menos do que 15 países das Américas e já era lido em seus três principais idiomas. Pelo menos 172 postagens já haviam compartilhado a mensagem do Cristiano Conservador em suas próprias páginas e alcançado mais de 225 mil interações. Segundo dados do CrowdTangle, este conteúdo pode ter sido visto por cerca de 33 milhões de usuários do Facebook em apenas dois dias — considerando a soma dos seguidores de todas as páginas que republicaram o material.